domingo, 5 de julho de 2009

Uma aula de Democracia


Entrevista com Fábio Konder Comparato na revista Caros Amigos, n. 72, de março de 2003
Para o professor Fábio Konder Comparato, autor em 1985 de um anteprojeto de Constituição encomendado pelo PT, professor titular de direito comercial na USP e especialista em direito constitucional, o aprofundamento da democracia no Brasil depende de uma iluminação do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Essa inspiração teria de ser semelhante à que o Mahatma Gandhi teve durante sua luta sem violência para a independência da Índia em relação ao domínio britânico. Então, Gandhi, depois de semanas de caminhada e meditação sobre o próximo passo a dar, chegou ao mar, pegou um punhado de sal, produto que era monopólio estatal britânico em toda a Índia, e proclamou que jamais os indianos pagariam de novo um tributo pelo sal, que passaria a ser de livre comercialização. Isso deu um motivo para as massas indianas se mobilizarem de maneira pacífica. Para Comparato, no cenário político brasileiro, está faltando uma inspiração semelhante do presidente Lula, que faça as massas do país se mobilizarem permanentemente, sem violência, em busca de um projeto concreto. Na sua opinião, por enquanto, “ao contrário daquilo que queremos, que imaginávamos e que ainda esperamos, não há uma modificação substancial da política brasileira, ou seja, o povo não passou a ser um sujeito ativo no cenário político” - esta a fagulha que falta ao governo Lula. Ele acha ainda que é possível processar os torturadores do regime militar, pois seus crimes não prescrevem. Esses processos seriam necessários para estirpar a nódoa do regime militar, que ainda pesa sobre o Brasil, de um modo desconhecido pelas gerações mais jovens, as quais assim se veriam frente a frente com o passado do país.

Nicodemus Pessoa
- Sempre começamos pedindo ao entrevistado para contar um pouco da sua história. Por exemplo, o senhor é um paulista... Sou um pouco mais do que paulista. Sou santista.

Nicodemus Pessoa
- Torcedor do Santos inclusive?

Não. Já me eduquei a não ser torcedor de nenhum time de futebol. Bom, formei-me em direito na USP, depois fiz o doutorado em direito na Universidade de Paris, vim para São Paulo, tornei-me livre-docente da Faculdade de Direito da USP e depois professor titular na cadeira de direito comercial. Ao mesmo tempo, advoguei na área de direito empresarial durante mais de trinta anos. Mas nos últimos anos só me dedicava a dar pareceres e não propriamente a representar clientes em ações judiciais. Acontece que em 1985 o PT me pediu que fizesse um anteprojeto de Constituição. Eu fiz e a partir daí fui aos poucos me voltando mais para o direito constitucional. E então para aquilo que é o cerne do direito constitucional, que é o sistema de direitos humanos. Fui abandonando a advocacia comercial, passei inclusive a dar pareceres de graça para o Ministério Público, e acabei encerrando a minha atividade profissional com um caso que me parece paradigmático, que me deu grande alegria, que foi a propositura de uma ação declaratória em nome de Inês Etiene Romeu, que foi barbaramente torturada em 1971 naquela casa de Petrópolis, ela foi estuprada três vezes e tentou duas vezes o suicídio. Ela não foi feliz na primeira ação, proposta pelo falecido doutor José Aguiar Dias, que foi ministro do Tribunal Federal de Recursos em pleno regime militar. Ela me procurou dizendo que queria unicamente que fosse restabelecida a verdade, porque no prontuário dela no Serviço de Informações constava que tinha sido terrorista e que se dizia presa política, mas ela não tinha sido presa política.

Ricardo Vespucci - Em que ano ela o procurou?

Acho que foi em 2000. Propus essa ação, ela me disse: “Doutor, não quero receber nenhum centavo, o senhor fica proibido de pedir qualquer indenização”. Então pedi apenas que fosse reconhecida a relação de autoria dos atos praticados contra ela, ou seja, cárcere privado, seviciais e estupro pelos agentes da União Federal. E o juiz, em questão de três meses, acaba de dar uma sentença julgando procedente a ação e reconhecendo que foi realmente a União Federal que, por intermédio desses seus agentes, todos do Exército nacional, cometeram esses atos criminosos. Eu disse a Inês: “Olha, vou encerrar a minha atividade profissional com isso para me resgatar de eventuais pecados que tenha cometido durante trinta anos de exercício de advocacia empresarial”.

Nicodemus Pessoa - O senhor disse: “Eu sou mais do que paulista, sou santista”. E me lembrou do Rubem Braga, que falava: “Eu modéstia à parte, sou de Cachoeiro de Itapemirim”. O senhor fala de Santos como se...

Não, é que Santos é a terra do Patriarca, de modo que há uma ligação muito forte com a nacionalidade. O verdadeiro espírito santista é um espírito de brasilidade, sem nenhuma discriminação ou preconceito.

José Arbex Jr.
- Voltando à questão das indenizações, uma das coisas que causaram o racha no movimento das Mães da Praça de Maio foi o fato de parte das Mães aceitarem a indenização do Estado pelos filhos desaparecidos durante a ditadura Argentina. A Hebe de Bonafini disse: “Não aceitamos dinheiro do Estado porque isso seria vender a memória dos nossos filhos e enterrar essa memória em troca de 250.000 dólares”. Como o senhor mencionou esse processo da recusa da indenização, eu queria saber a sua opinião a respeito, porque no Brasil tem-se a percepção de que, quando o Estado paga a indenização, isso é uma vitória.

É uma questão de julgamento pessoal. Pessoalmente, eu não pediria indenização, porque o dinheiro do Estado sai do povo. Isso significaria o povo duplamente prejudicado: fisicamente e moralmente pelas torturas e pelo assassínio e patrimonialmente porque não é o Estado que inventa ou cria esse dinheiro, isso vem de impostos. E a estrutura tributária brasileira é tão injusta, que o pobre paga muito mais do que o rico, de modo que não se pode nem dizer que os ricos, que formam os grandes sustentáculos de um regime criminoso, como foi o regime militar, estariam agora indenizando indiretamente os prejudicados. Mas é uma questão de julgamento pessoal e eu não faria nenhuma restrição àqueles que pedem indenização. No caso de Inês Etiene Romeu, fiquei muito comovido com a posição dela e, como tenho formação cristã, me lembrei - e disse isso ao juiz - de um trecho do Evangelho de São João, quando diz: “Queiram a verdade porque a verdade vos tornará livres”. Ela vivia numa situação de depressão moral porque a verdade sobre o que ela passou não tinha sido exposta com clareza. Acho que a verdade sobre o regime militar deveria ser de algum modo dada como uma espécie de purificação da alma brasileira. Os jovens a quem leciono na Faculdade de Direito não tem a menor idéia do que aconteceu durante o regime militar. E isso é uma mancha, uma nódoa moral que não foi tratada e está infeccionando a alma brasileira. Em primeiro lugar, sob o aspecto jurídico, não temos nenhuma razão para impedir o julgamento desses homens, os que ainda sobrevivem, civis e militares - isso, no sistema de direitos humanos, no âmbito da Organização dos Estados Americanos, é pacífico, não há prescrição, a prescrição é inválida. E, por outro lado, isso é uma espécie de reeducação do povo. É preciso que o povo medite sobre o que aconteceu, sobre como nos comportaríamos hoje se estivéssemos na mesma situação de ontem, porque só aí nós nos tornaremos livres dessa covardia. O general De Gaulle, assim que assumiu o governo provisório, depois da libertação da França, na Segunda Guerra, disse: “A primeira medida é instituir tribunais regulares para julgar os colaboracionistas, porque a França jamais poderá encarar o futuro com simplicidade e com confiança em si se não liquidar essa conta do passado”. Porque ele sabia perfeitamente que muitos dos colaboracionistas, e que até estavam próximos ao governo provisório, tinham escondido essa colaboração, e também sabia muito bem que, pelo menos no começo da ocupação nazista, a maioria absoluta do povo francês apoiava o colaboracionismo.


João de Barros
- Que tipo de resíduo o senhor acha que essa nódoa está deixando na sociedade brasileira?

É o fato de que continua a haver uma certa imunidade, a concepção de imunidade do poder. E continua a haver tanto para isso quanto para outras questões, como, por exemplo, problemas econômicos, a depressão, inflação galopante, a aceitação de que os fins justificam os meios. E isso é desmoralizante, de certa maneira está prejudicando o governo Lula. O professor Boaventura de Souza Santos disse que a eleição de Lula foi uma vitória não da ideologia, e sim da ética. Espero que isso ainda aconteça, mas no momento estamos caminhando para um rumo divergente, e dou dois exemplos que me parecem muito graves. O primeiro é a aceitação do deputado Geddel Vieira Lima como primeiro-secretário da Câmara. É uma função importantíssima, porque é a que distribui todos os benefícios e subsídios aos deputados, de modo que o primeiro-secretário é sempre alguém que forma o seu eleitorado interno.


Nicodemus Pessoa - E esse deputado não tem uma boa biografia, não é?

Bom, segundo o que aparece nos jornais e na televisão sem contestação do próprio, ele é o “Geddel vai às compras”. Mas, de qualquer maneira, a participação dele na corrupção da comissão de Orçamento foi demonstrada na CPI, ele simplesmente no final conseguiu se safar, não se sabe bem como. Mas, ainda que se desse o benefício da dúvida e se dissesse “ele não foi processado nem condenado, portanto não podemos acusá-lo”, um governo ético não pode se permitir a dúvida, ou seja, constituir uma mesa de Câmara com alguém de cuja honestidade se duvida é desastroso. É exatamente aquilo que ocorreu durante o impeachment de Collor. O meu querido tio Evandro Lins e Silva teve ocasião de dizer isso no Senado Federal durante o processo do ex-presidente: “Invoca-se para defender a posição do ex-presidente o benefício da dúvida, mas como se pode admitir como presidente da República alguém de cuja honestidade se duvida? Isto já é uma acusação fatal”. E o segundo fato que me deixa muito perturbado é tratar direitos fundamentais sob a ótica financeira do capitalismo neoliberal. Eu entro nessa matéria super polêmica da previdência social. O governo dos trabalhadores ainda não entendeu que o direito à previdência é um direito fundamental. Portanto, o que se esperava é que o novo governo dissesse: “O serviço da previdência social tem falhas terríveis. A primeira coisa que temos de fazer é repará-las”. Mas ele usou a técnica do guarda-livros: “A previdência social está endividando a nação, então precisamos não consertas as falhas da previdência social, não reconhecer a todos esse direito sagrado, mas simplesmente equilibrar as finanças”. Isso já não é mais pôr o carro adiante dos bois, é pôr o banqueiro e o capital adiante das pessoas humanas. Não é que a gente despreze a questão do equilíbrio financeiro. Não é isso, ao contrário: a previdência social não está equilibrada porque aqueles que deveriam pagar não pagam, ou seja, o sistema contributivo para a previdência social é incompatível com o funcionamento de uma economia que produz cada vez mais desempregados. É ilógico, portanto, tentar fundar o financiamento da previdência social na contribuição dos empregados. Hoje já se reconhece em várias partes do mundo, mas isso nunca é divulgado pela imprensa, que a previdência social do futuro vai ter de se fundar predominantemente na tributação. E são os ricos que têm de pagar mais. Existe ampla base de incidência, como se diz tecnicamente em direito tributário, para fazer essa imposição, quando mais não for - estou entrando num outro capítulo - porque o sistema financeiro tem obtido nos últimos anos uma lucratividade anormal e certamente injusta, para dizer o mínimo. Os jornais têm demonstrado que no ano passado, por exemplo, a lucratividade média do sistema financeiro foi de 24,5 por cento sobre o capital investido, enquanto a do setor industrial foi de 5,6 por cento. A fase financeira do capitalismo atual é muito diferente daquela sobre a qual refletiu Marx. Naquela época, para lucrar, era preciso produzir, não havia outro meio para lucrar senão produzindo, portanto era preciso fabricar e prestar serviços. Hoje descobriu-se a pólvora: é não somente possível, mas muito mais fácil lucrar sem produzir, que é o sistema da especulação financeira, porque, qualquer que seja a lucratividade de uma indústria, os custos são comparativamente muito maiores do que fazer girar uma empresa financeira de tipo especulativo. Esses lucros do sistema financeiro são lucros extraordinários. Já tivemos imposto de renda sobre lucros extraordinários. E não se pode dizer que essa tributação foi feita num regime anticapitalista, num regime socialista. Ora, por que não utilizar esse mecanismo?

José Arbex Jr.
- O professor Celso Furtado declarou que não achava a nomeação de Henrique Meirelles para o Banco Central um dado estrutural do governo Lula, mas um acidente de percurso, porque ele acreditava ou queria acreditar que o Lula, nessa fase do governo, precisava fazer certas concessões para se estabilizar e depois começar a série de reformas que todos esperavam que ele fizesse. O senhor tem essa percepção também ou acha que Henrique Meirelles já é uma sinalização estrutural do governo Lula?

Agora eu volta à sua indagação. Eu gostaria muito que fosse um acidente de percurso, mas tenho muitas dúvidas a esse respeito e, a meu ver, é impossível voltar atrás numa determinada linha de política econômica. Além do que, essa linha é absolutamente contraditória. Todos no Brasil e no exterior reconhecem que o nosso maior problema atual é o endividamento do Estado. Só a dívida pública interna corresponde a 11 por cento do PIB, sendo que, dessa dívida, praticamente a metade, 48,5 por cento, é indexada ao dólar. Foi um crime de lesa-prátia que o governo Fernando Henrique Cardoso cometeu. Infelizmente, esses criminosos não serão julgados por isso. Não havia razão nenhuma para financiar o Estado mediante o lançamento de títulos da dívida pública indexados ao dólar. Ou melhor, não havia necessidade; poderia ter havido uma razão, mas não era uma razão necessitante - o Estado não era obrigado, naquela ocasião, a fazer isso. Isso deu aos bancos não só esses lucros extraordinários - porque, imagine, só nesse setor, se o dólar no ano passado se valorizou cerca de 60 por cento e a taxa básica de juros até novembro foi de 20 por cento, em boa matemática isso dá 80 por cento. Não existe país no mundo em que os bancos, na aplicação em títulos da dívida pública, ganhem 80 por cento. E 80 por cento líquido. E, se o nosso grande problema é o endividamento público, não faz o menor sentido começar o governo aumentando juros; nem tomando a iniciativa de propor ao FMI o aumento do superávit primário. Isso me lembra muito, até para tornar menos grave o que estamos falando, um episódio ocorrido durante o Estado Novo, no Tribunal de Segurança Nacional, de triste memória. Havia um procurador junto ao Tribunal que era uma espécie de acusador público, se chamava Himalaia Virgulino. Os advogados gostavam muito dele pela sua afabilidade, embora fosse um energúmeno. E uma ocasião - isso contado pelo meu querido tio Evandro Lins e Silva, depois vou falar do Evandro, que é importante -, quando os advogados estavam reunidos com esse procurador num ameno bate-papo, ele disse, para espanto geral: “Aqui, todos obedecem ao governo, menos eu. Porque, antes de o governo ordenar, eu já fiz”. Ora, como? Antes de o FMI exigir, eles já aumentaram o superávit primário!


Ricardo Vespucci - Eles deram uma explicação plausível?

Sempre têm explicações. Mas tudo isso tem um denominador comum: ao contrário daquilo que queremos, que imaginávamos e que ainda esperamos, não há uma modificação substancial da política brasileira, ou seja, o povo não passou a ser um sujeito ativo no cenário político. Não se pode mexer com direitos fundamentais, como previdência social, sem pelo menos ouvir o povo. Portanto, se eles querem mudar o sistema previdenciário, muito bem, que votem no Congresso, mas submetam a referendo. A mesma coisa, em matéria de política econômica. A economia não é uma ciência exata, isso é uma lorota que o sistema capitalista desenvolveu. A economia, como a política e o direito, é uma sabedoria de decisões. Os romanos diziam que a política é uma prudência, na tradução da fronesis grega, ou seja, é uma sabedoria de tomar decisões, não se trata de contemplar a realidade, como na astronomia, e dizer que temos vários sistemas no universo. O sentido de teoreia, do grego, é esse, é contemplação. Economia não é isso. Portanto, na economia é preciso saber quais são os objetivos das decisões tomadas. Em outras palavras, a quem favorece determinada política? Não há a menor dúvida de que esse tipo de política iniciado no governo Fernando Henrique Cardoso e que agora está sendo continuado, segundo diz o governo, porque não há outra alternativa, o que é um engano, favorece o sistema financeiro e desfavorece, muito, as camadas mais pobres da população, desfavorece o sistema industrial. Sempre acreditei que os empresários brasileiros fossem inteligentes. Podia duvidar, talvez, da sua justiça e algumas vezes do seu patriotismo, mas sempre imaginei que fossem inteligentes. Tenho de reconhecer o meu erro. A partir do momento em que embarcaram no sistema neoliberal, com privatizações, abertura de fronteiras para a movimentação livre de capitais e desregulamentação da economia, eles se suicidaram. No entanto, eles continuam, protestam retoricamente contra os bancos, mas continuam com a corda no pescoço. Então, resumindo, a política econômica não é uma coisa que esteja ligada à natureza das coisas, não é um direcionamento que o governo toma, porque não há o que fazer contra um fenômeno natural, como a seca do Nordeste, e a prova mais provada de que essa política atual é incompetente, sem falar na injustiça, é o fato de que um bastião do conservadorismo capitalista e neoliberal, como é a revista The Economist, que, em um centro de pesquisas, aliás muito bom, o Economist Inteligence Unit, há questão de duas semanas, fez uma análise da economia brasileira e disse, reconhecendo o óbvio, que o grande problema é o endividamento interno, e que só há uma maneira de começar a lutar contra esse problema: reduzir os juros. E, conclui esse grupo de pesquisas, é claro que isso vai afetar a inflação, mas é muito menos importante isso do que o Brasil, como a Argentina, ser obrigado a quebrar, e negociar em condições de absoluta fraqueza com os credores internacionais. Então, eu gostaria de saber do ministro da Fazenda em que autoridade ele se baseia para dizer que está seguindo uma política correta. Mas continuo a acreditar firmemente no presidente da República. O Lula é um homem de grande sensibilidade humana, um homem reto, em algum momento, e espero que seja breve, ele vai se dar conta disso.


Nicodemus Pessoa
- O senhor já teve oportunidade de comunicar essas divergências diretamente? Já, já.

Diogo Moysés
- E esse continuísmo o senhor enxerga no conjunto do governo?

Não, esse é ate um fator de esperança, evidentemente o governo Lula não é o governo Fernando Henrique. Seria um disparate dizer que é um continuísmo global. O conjunto do ministério Lula é excelente e há ministros de grande valor, personalidades humanas de escol, raramente tivemos na República um ministério tão bom. Agora, é preciso não esquecer uma realidade pungente: tal como está organizado o governo brasileiro, o ministro da Fazenda é um superministro. Se ele quiser, nada acontece aos demais ministérios. É preciso que o presidente saiba disso. Até agora, no entanto, ele tem mantido essa predominância absoluta do ministro da Fazenda. O do Planejamento segue atrás, mas os outros ministros fazem o que podem, e têm feito muita coisa boa. Infelizmente, a imprensa não tem noticiado como deveria. E essa atitude da imprensa é típica da nossa, enfim, é o vício geral do setor no mundo inteiro.


Nicodemus Pessoa - O que merecia ser divulgado e não foi?

As primeiras medidas tomadas, por exemplo, por Marina Silva, por Miguel Rosseto, por Dilma Rousset, não só medidas, mas declarações em que põem o dedo na ferida. Quero aproveitar para divulgar aquilo que, infelizmente, não foi suficientemente divulgado. A AES, que controla a Eletropaulo, quebrou nos Estados Unidos, com uma dívida de 3 bilhões de dólares. Pois bem, a sua subsidiária no Brasil, a Eletropaulo, enviou à matriz, para socorrer a matriz, 1 bilhão de dólares, e ao mesmo tempo deixou de pagar a dívida com o BNDES. Ora, o fato de o governo brasileiro ter financiado empresas estrangeiras para adquirir empresas estatais com dinheiro público, do trabalhador, pois o BNDES gere o Fundo de Amparo ao Trabalhador, o FAT, já foi em si um crime de responsabilidade, que mereceria ser julgado se tivéssemos tribunais competentes para isso. Pois bem, depois disso tudo, essa empresa que embolsou dinheiro do governo, dinheiro que vem do Fundo de Amparo ao Trabalhador, ainda deixa de pagar para remeter 1 bilhão de dólares para a matriz? A Dilma Rousset denunciou isso e mostrou o descalabro dessa política de privatizações. Isso é novo. Agora, essa imprensa que hoje ataca o Lula, sem nenhuma consideração de contexto, nunca atacou a política criminosa de privatizações. É muito fácil dizer: “O Lula antes dizia uma coisa, agora diz o contrário”. “O PT antes votava num sentido e agora vota no outro”. Também acho que isso é uma contradição grave e até muitas vezes antiética, mas aqueles que nunca atacaram os crimes do regime anterior e dos governos anteriores não têm autoridade moral para levantar essas contradições. Mas, quero frisar muito fundamente, em política a gente tem de escolher um lado. Eu escolhi um lado, acho que é o lado certo, o lado do povo dominado. O PT está até agora do lado do povo dominado, portanto, o fato de eu atacar alguns pontos do governo Lula não significa que mudei de lado. Acho que isso é uma contribuição para que o PT e o governo Lula continuem firmemente do lado do povo.


Ricardo Vespucci
- O senhor fala que a não divulgação das boas medidas já tomadas pelo governo Lula reflete um vício da imprensa brasileira e da mundial. Que vício é esse?

É que, na verdade, os grandes órgãos dos meios de comunicação de massa passaram a atuar de acordo com uma lógica típica das grandes organizações. O que interessa é a sobrevivência deles, e o mundo que se dane. Isso existe não só em organizações econômicas, como em organizações políticas e até mesmo em organizações religiosas. Essa sociologia da burocracia egoísta não é de hoje, ela data do começo do século 20. Ostrogorski, Michels mostram como as grandes organizações acabam fechadas dentro de si mesmas e procuram apenas sobreviver. E os grandes órgãos de comunicação de massa entendem que seria muito ruim para eles se fossem considerados órgãos “chapa branca”, ou seja, subsidiários do governo. Acontece que, muitas vezes, esses mesmos grandes órgãos de imprensa ou grandes redes de televisão que procuram sobreviver contra tudo e contra todos e, portanto, não têm nenhuma ética, a não ser a do egoísmo e da auto-sobrevivência, acabam achando que, em determinadas situações, para sobreviver, é preciso, sim, defender o governo contra todas as evidências, como é o caso agora dos grandes órgãos de comunicação nos Estados Unidos. Nessa última manifestação mundial contra a guerra no Iraque, que, segundo as estimativas mais conservadoras, reuniu 5 milhões de pessoas nas ruas, em sessenta países, em seiscentas cidades do mundo inteiro, na televisão norte-americana havia poucos flashes, e logo depois apareciam os acadêmicos de plantão, pessoas evidentemente, como se sabe, “muito imparciais”, “nenhum vínculo” com o governo e “nem defendem ideologias”, para explicar que o que está acontecendo não é propriamente uma manifestação popular, mas uma manipulação de grupos bem conhecidos etc. Tenho procurado refletir muito sobre os meios de comunicação de massa, que têm um papel político decisivo, porque vivemos agora numa sociedade de massas, quer dizer, não há mais a comunicação face a face, somos privilegiados aqui porque estamos numa roda, estamos trocando idéias. Mas isso não terá a menor repercussão política, o menor efeito social se não for publicado. Daí porque, a meu ver, as constituições do futuro vão ter de tratar do setor de comunicação de massas necessariamente como órgão de poder, não oficial, mas como órgão de poder. Não se pode disciplinar as empresas de comunicação de massas como empresas iguais às outras. Não vamos confundir liberdade de imprensa com liberdade de empresa. São empresas diferentes, porque trabalham num setor de grande interesse público e, quando falo interesse público, é interesse do povo, publicus em latim significa “do povo”. Não é interesse do Estado, é interesse do povo. Não podemos mais nos comunicar a não ser por intermédio dos meios de comunicação de massa, salvo por meio da Internet, e essa é uma das coisas mais extraordinária dos últimos tempos. Essa última manifestação que reuniu pelo menos 5 milhões de pessoas nas ruas do mundo inteiro foi possível em pouco tempo por causa da Internet, precisa ser agora explorada ao máximo. Por exemplo, o Acordo Multilateral de Investimentos, que foi negociado no âmbito da OCDE, a organização internacional que reúne os países supostamente mais industrializados do planeta, estava em preparação, o projeto já estava avançado e dava aos capitais estrangeiros muito mais proteção do que aos imigrantes. Os imigrantes podem ser presos e deportados sem maiores dificuldades, enquanto que, pelo projeto do Acordo Multilateral de Investimentos, os capitais estrangeiros gozavam de proteção absoluta, a tal ponto que os titulares do capital estrangeiro podiam recusar a jurisdição dos tribunais locais e exigir que o eventual conflito fosse julgado fora do país. Pois isso foi denunciado publicamente porque vazou pela Internet e aí o projeto abortou. Não se pode convocar 5 milhões de pessoas, em dois ou três dias, para se manifestar nas ruas a não ser pela Internet. Qual é o órgão de imprensa que vai fazer isso hoje?

Renato Pompeu
- Li um artigo seu em que o senhor fala que é necessário aumentar os poderes executivos, legislativos e judiciários da ONU. O senhor pensa em algo como um governo mundial?

Eu penso e advogo ardentemente uma organização mundial. É esse o futuro. Hoje estamos assistindo a uma coisa maravilhosa que é o surgimento dos povos no cenário internacional como sujeitos ativos. Por que os Estados Unidos até hoje não conseguiram desencadear a guerra no Iraque? Porque estão perdendo a guerra de propaganda. Os povos já não aceitam mais essas explicações dadas sumariamente depois do 11 de setembro de 2001, de que tudo é culpa dos terroristas. E, veja, os dois países onde os povos se opõem mais veementemente à guerra no Iraque são, na Europa, a Espanha e o Reino Unido, países cujos Estados apóiam sem restrições o governo norte-americano. Aí temos essa realidade extraordinária, os povos contra os governos. É preciso, portanto, desmontar essa arquitetura dos Estados no cenário internacional e estabelecer a verdadeira democratização que põe os povos em linha de frente. Escrevi recentemente que teríamos de pensar seriamente no quadro da reforma das Nações Unidas, numa mudança do critério de voto na Assembléia Geral, porque, na Assembléia Geral, cada Estado tem um voto. Mas isso significa reforçar abusivamente os Estados em detrimento dos povos, é preciso compensar com o peso das populações. Então as Ilhas Seichelles têm o mesmo peso de voto que a China? Isso não faz sentido na lógica democrática. E, mais, se a Carta das Nações Unidas, como diz o preâmbulo, quer favorecer a difusão dos direitos humanos e a defesa da dignidade humana no mundo todo, os membros das Nações Unidas têm de ter o mínimo padrão democrático. Portanto, não é possível admitir que votem na Assembléia Geral, por exemplo, lado a lado, países de governos autenticamente democráticos e ditaduras. Esses países que deixam o sistema democrático deveriam ter o direito de voto suspenso na Assembléia Geral das Nações Unidas.

João de Barros
- como o senhor mensuraria essa democracia, seria apenas o ato de votar?

Não. A equação democrática é soberania popular mais respeito integral aos direitos humanos. Podemos discutir o grau da soberania popular. Eu, para início de conversa, aceitaria o critério atual de que, se o povo não participa diretamente das grandes decisões, pelo menos ele tem o direito inafastável de eleger os governantes. Agora, a idéia democrática, que é fecunda, praticamente inexaurível, vai se ampliando no sentido da democracia participativa, e aí volto ao caso brasileiro - não podemos admitir que o governo dos trabalhadores faça restrições ao avanço da democracia participativa, é preciso insistir, a tempo e a contratempo, que todas as grandes decisões que afetam o futuro do país só serão legítimas quando referendadas pelo povo e a meu ver, no caso da ALCA, por exemplo. Já disse isso, já escrevi que o projeto da ALCA tal como foi apresentado pelos Estados Unidos é incompatível com a nossa Constituição, mas, se o governo insistir em negociar a ALCA e chegar a um acordo final, isso seria ilegítimo se aplicado no Brasil sem o referendo popular.


Ricardo Vespucci
- quantas medidas, hoje, seriam objeto de referendo?

Por exemplo, a modificação do sistema de previdência social, e aí abre-se um grande espaço para a reivindicação popular - o orçamento participativo não pode tardar no plano federal. Deve-se cogitar de uma modificação da Constituição, sempre com o referendo popular para introduzir o orçamento participativo obrigatoriamente nos três níveis da Federação. E, falando em modificação de Constituição, gostaria de dizer mais uma vez do meu desalento, da minha indignação pelo fato de essa Constituição de 1988, que não foi referendada pelo povo, ter sido remendada 44 vezes sem que o povo não apenas não se manifestasse, mas nem sequer soubesse que ela estava sendo modificada. Isso os meios de comunicação de massa que hoje são tão críticos do governo do PT jamais criticaram, eles acharam isso perfeitamente normal.


Ricardo Vespucci
- Como é que se dá o referendo de uma legislação trabalhista, por exemplo, cheia de artigos e alíneas?

Tudo depende da boa técnica do referendo. Ele só pode comportar uma alternativa, sim ou não, porque a técnica do debate e da discussão é do parlamento, mas o mais recomendável é que o povo decida sobre princípios e, no fundo, é esse o espírito do orçamento participativo, o povo não vai discutir verba por verba, mas vai aprovar as diretrizes orçamentárias. Temos agora, pela Constituição, a distinção entre a Lei de Diretrizes Orçamentárias e a própria Lei de Meios, que é o orçamento, o orçamento tem de obedecer as diretrizes orçamentárias que foram votadas pelo congresso nacional. É justamente sobre isso que o povo não só pode, mas deve se pronunciar. É um preconceito muito da nossa classe achar que o povo não entende do assunto e não tem como votar. Em primeiro lugar, o povo sabe muito mais do que a gente imagina, em segundo lugar a técnica de discussão pública é pedagógica, o povo se interessa e acaba aprendendo rapidamente e, ao final das contas, como diziam os grandes pensadores da Grécia antiga: “O governante é um educador e a função da política é educar o povo”.


José Arbex Jr. - Voltando à ALCA. Como se explica a completa cegueira da elite industrial brasileira para o que ela vai significar do ponto de vista do sucateamento do parque industrial, como entender a passividade, ou conivência ou mesmo cumplicidade, como é o caso desse empresário da Sadia que agora é ministro de governo, Furlan, e é um advogado sincero da ALCA?

João de Barros
- Só emendando, o senhor também acha que o capital nacional é mais bem-vindo do que o internacional? Haveria diferença entre ambos? São duas questões importantes.

No caso do ministro Furlan eu entendo, porque ele vem de um setor empresarial que depende muito de exportação e tem tido uma atividade cheia de êxitos até agora, de modo que ele vê a questão sob a ótica do seu setor industrial e acha que pode tirar benefícios da ALCA. Mas acho que é uma visão muito estreita da realidade. Agora, quanto aos industriais dos outros setores, eu realmente não entendo e estou procurando alguém que explique por que razão os industriais brasileiros têm aparentemente uma vocação ao suicídio. Agora, a segunda questão, que é da maior importância. O governo Fernando Henrique Cardoso, seguindo a linha do governo celerado de Fernando Collor de Melo, provocou uma vasta desnacionalização da economia brasileira. Os dados estão aí para a consideração de todos. Atualmente, 56 por cento do faturamento industrial é feito por empresas estrangeiras. Dos vinte maiores bancos que operam no Brasil, onze são estrangeiros. Ora, isso é absolutamente antidemocrático e representa um obstáculo seríssimo a uma política econômica autônoma. Por que é antidemocrático? Porque a democracia é um regime em que todas as pessoas, todas as organizações, todos os agentes têm de respeitar os direitos e deveres comuns daqueles que vivem no território brasileiro, ou seja, não existem apenas pessoas cidadãs, a empresa que opera no Brasil também deve ser uma empresa cidadã, deve sobrepor o interesse nacional ao interesse próprio empresarial. Mas nunca se pode exigir de uma empresa estrangeira que ela seja uma empresa cidadã. No conflito entre o Brasil e potências estrangeiras, sejam elas Estados, organizações internacionais como o FMI, não se vai exigir da empresa estrangeira que esteja do lado brasileiro, isso até a Velhinha de Taubaté entende. Ora, o que significa isso em termos práticos? Significa que o governo brasileiro perdeu instrumentos de direção da economia. Mais: politicamente, as classes dominantes já não são mais predominantemente brasileiras, vimos isso nas últimas eleições, uma vasta movimentação no setor das empresas estrangeiras, porque se temia que o Lula fosse o demônio. Mas aí me desculpem, quero fazer uma imediata ligação com o problema Lula, que me preocupa muitíssimo. Quero mais uma vez reafirmar a minha grande confiança e a minha admiração irrestrita por ele. Acho que ele tem uma rara inteligência política. Costumo dizer que faço sempre o teste quando ele é entrevistado pessoalmente - procuro responder antes as perguntas feitas a ele e ele sempre responde melhor do que eu responderia. Não que eu seja um portento, mas pelo menos isso já me dá uma dimensão da minha modéstia de professor diante desse homem que não tem nenhum título universitário. Ele é uma grande inteligência política. Também é uma pessoa de grande sensibilidade. A política não é uma atividade racional, é uma atividade integralmente humana e o ser humano é, sobretudo, um animal sentimental. Na filosofia dos valores se reconhece que o justo ou o injusto, o decente ou o indecente, o belo ou o feio não são apreendidos só pela inteligência, são apreendidos pelos sentimentos, e o Lula tem essa capacidade. Pois bem, como se explica então que o que esteja acontecendo agora seja uma aparente não digo submissão, longe disso, mas enfim uma concordância do governo Lula com a predominância do setor financeiro na economia brasileira? Quero dar uma explicação que talvez não seja a verdadeira - acho que isso vem da experiência sindical do Lula. Quando ele se tornou grande líder sindical, estávamos no regime militar e, no regime militar, todas as partes em conflito no setor econômico, empresários, trabalhadores e até os consumidores sabiam que não podiam pedir a intervenção do governo, não tinham confiança no governo, e o Lula teve os seus maiores sucessos sindicais negociando diretamente com os empresários, sem apelar para a intervenção governamental. Aliás, quando o Estado interveio, foi para colocá-lo na cadeia, como todo mundo sabe. Então, a partir daí, a minha explicação: ele criou uma imagem da sociedade em que os grandes conflitos são resolvidos nas mesas de negociações, o que a meu ver é uma imagem generosa mas profundamente falsa. No campo político e econômico há uma fase em que o conflito, para ser resolvido, exige a intervenção de um poder superior, porque as partes sozinhas não conseguem pôr fim ao conflito e essa é a função do Estado, em nome do povo. Ora, no caso dos bancos, talvez eu esteja dizendo bobagens, não sou especialista na matéria, mas já trabalhei muito em banco, e alguma coisa acho que conheço. Veja o que aconteceu quando o Lula chamou os banqueiros a Brasília. A pessoa que assistiu à entrevista me contou e foi fascinante. O Lula, é tipicamente dele, disse aos banqueiros: “Os senhores vejam, uma pobre dona de casa tem de comprar uma geladeira, a geladeira que ela tinha pifou e não tem dinheiro pra comprar à vista, e faz um carnê de pagamento e tem que pagar esses juros de 100 por cento ao ano, os senhores vejam como isso é terrível”. Então, essa pessoa que assistiu à entrevista me contou que os banqueiros todos ali sentadinhos em frente ao Lula, todos engravatados e tomando notas! E depois a conclusão deles: “Não, nós vamos estudar para ver se há uma solução”. Ora, nos governos anteriores, militares ou civis, nunca perguntaram aos banqueiros como se resolve o assunto. Eles, por exemplo, aumentavam o depósito compulsório e diziam: “Se vocês quiserem aproveitar esse dinheiro que recolhemos, vão ter de emprestar ao consumidor, para compra de equipamentos agrícolas, vão ter de emprestar para capital de giro de pequenas e médias empresas com o juro que nós fixarmos, se vocês não se interessarem, o dinheiro fica conosco”. A questão dos títulos indexados ao dólar: os bancos têm mais ou menos a metade do estoque dos títulos da dívida pública indexado ao dólar, é por isso que, nas vésperas do vencimento, eles fazem movimentações fictícias com a moeda norte-americana e elevam a cotação, porque a cotação do dólar no vencimento é calculada pela cotação dos três últimos dias em que houve negociação. A outra metade está nos fundos de investimento que os bancos administram. O governo não precisa criar uma comoção nacional, não precisa tomar nenhuma medida revolucionária, não precisa ir ao Congresso, ele simplesmente chama os bancos e diz: “Vejam, consta, pelos nossos registros, que vocês têm cerca de metade do estoque de títulos indexados ao dólar. Então, quando chegar o vencimento desses títulos que são de sua carteira própria, não os outros que são de carteiras por vocês administradas, quando chegar o vencimento, vocês vão trocar por outros títulos que vamos emitir sem indexação ao dólar”. Obviamente, os banqueiros vão protestar, alegar direitos adquiridos, e o governo dirá tranqüilamente a eles: “Bom, é sua opção, a partir do vencimento desses títulos, vocês serão descredenciados como dealers no lançamento de títulos públicos do governo brasileiro, muito obrigado e até mais ver”.


José Arbex Jr.
- Conversando com lideranças legítimas e expressivas dos movimentos sociais - não vou citar nomes porque não fui autorizado -, há um certo consenso de que o senhor seria um nome ideal a ser lançado como presidente da República?

Mas isso é uma piada de mau gosto.

José Arbex Jr.
- Se um dia toca o telefone e do outro lado da linha está o Luiz Inácio Lula da Silva e fala “professor, queria convidá-lo para compor o ministério”, qual seria a sua resposta?

Tenho muita dificuldade em aceitar, seria preciso saber em que ministério... mas em princípio eu não aceitaria.


José Arbex Jr. - Por quê?

Porque cada pessoa tem o seu projeto de vida, eu já entrei na fase não digo a do “Jesus está chamando”, mas já estou me aproximando dos 70 anos, tenho 66 anos e o meu projeto de vida é ensinar e divulgar certas idéias.


Renato Pompeu
- Mas o senhor mesmo não disse que o político deve ser um educador?

É verdade, agora um ministério... notem bem, coisa que no geral se desconhece, a palavra ministro vem de minus, quer dizer que ele é o menor, eu só aceitaria se tivesse uma posição de total e completo acordo com a política geral do presidente da República e me reconhecesse competente em alguma matéria, o que eu acho difícil.

Diogo Moysés
- É possível fazer uma avaliação do seu colega Márcio Thomaz Bastos e do que vem acontecendo no ministério?

Ele justamente faz parte desse grupo excelente de ministros que o Lula nomeou e acho que já está fazendo muito e vai fazer ainda muito mais. Há um setor muito delicado no ministério, que é a Polícia Federal, e eu espero que ele saiba equacionar esse problema. A proposta de mudança do Judiciário é válida, importante, mas eu gostaria de poder meter a minha colher de pau nessa questão. Li hoje no jornal e ouvi ontem na rádio que um funcionário do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) fez pesquisa sobre o funcionamento do Judiciário e dizia que o funcionamento eficiente da Justiça é aquele em que os juízes não resolvem, não decidem violar a lei para proteger os direitos sociais. Parece que ele é economista, eu diria que é de tomar muito cuidado da parte dele fazer como estou fazendo agora, metendo a minha colher de pau em outros assuntos que não são da minha área, mas reconheço que ele disse uma bobagem. A lei está submetida à Constituição e a de 1988 é organizada em torno de princípios, e esses princípios começam pela proteção da dignidade humana, no artigo 3º, numa espécie de carta de princípios que tem até quase um sabor religioso, ela diz assim: “São objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil construir uma sociedade justa, livre e solidária, garantir o desenvolvimento nacional, erradicar a miséria e a marginalização e reduzir as desigualdades setoriais e regionais,promover o bem de todos, sem preconceitos de raça, classe, religião...” etc. Depois tem um capítulo sobre direitos humanos. Ora, quando o juiz verifica que uma lei, na sua aplicação prática, contraria esses princípios, não é que ele pode deixar de aplicar a lei, ele é obrigado, em consciência, a deixar de aplicar a lei. Mas o fundamental na reforma do Judiciário está em garantir a independência da magistratura, a independência do Judiciário diante do Poder Executivo. Tradicionalmente, o Judiciário sempre foi submetido à influência determinante do Poder Executivo, e é o que ocorre com o maior tribunal do país, que é o Supremo Tribunal Federal. Infelizmente, depois que o Lula foi eleito, não pude me comunicar com ele, essa é a maldição do poder, o sujeito fica fechado, se aliena do povo, mas mandei o recado - entendo que o presidente da República não tem legitimidade mais para nomear discricionariamente ministros do Supremo Tribunal Federal. É sabido que os ministros nomeados por um presidente são considerados “a bancada do presidente”. O Lula tomaria uma medida de grande relevância política e de grande repercussão nacional e sobretudo falaria muito a esse inconsciente dos setores jurídicos do país, se declarasse: “Eu não me acho legitimado a nomear quem eu quiser para o Supremo Tribunal Federal sem ouvir a sociedade e os seus órgãos representativos, o Judiciário, o Ministério Público, a Ordem dos Advogados do Brasil” etc.


Diogo Moysés
- E ele é que criaria esse novo mecanismo?

Ele não precisaria mudar a Constituição, mas já iniciaria a mudança da Constituição, e esses ministros que ele nomeasse teriam uma autoridade moral extraordinária, porque ninguém diria: “Esses são ministros do presidente”. Vejam. O Poder Judiciário - Montesquieu disse isso muito bem - é o único que não tem poder, parece uma contradição, mas ele queria dizer o seguinte: é o único que não dispõe de recursos para impor as suas decisões, é obrigado a pedir o auxílio do Executivo para isso, mas é aquele que, por isso mesmo, mais depende de autoridade moral, de respeito do cidadão. O Judiciário começa a declinar a partir do momento em que o povo já não acredita mais na idoneidade, na independência do juiz. Então, esse é o grande problema, em relação ao Executivo, mas há também a independência dos magistrados. Os magistrados de primeira instância são subordinados aos tribunais superiores. Os tribunais superiores. Os tribunais superiores e, no caso do Ministério Público, os conselhos superiores do Ministério Público, se acham patrões do juiz de primeira instância e dos promotores de justiça. É muito difícil entender isso, até mesmo os formados em direito não entendem. Aí falta essa educação cívica. O juiz de direito e o representante do Ministério Público não estão submetidos a uma hierarquia funcional, como no Executivo. No Executivo, o chefe de seção tem direito disciplinar sobre o seu subordinado e pode puni-lo e dar ordens, e o subordinado é obrigado a cumprir as ordens, desde que não sejam ilegais. O desembargador que der ordem a um juiz para ele decidir neste ou naquele sentido comete um crime de prevaricação.


Ricardo Vespucci - E é isso que vive acontecendo?

Não diria ser a regra geral, mas acontece amiúde, a todo momento topamos com isso. Essa seria realmente uma medida que sacudiria o Poder Judiciário. E quero terminar, porque já falei enormemente, dizendo o seguinte:política é também uma representação simbólica. Não se trata apenas de tomar medidas que tenham efeito concreto, material. Trata-se também - como disse o Mahatma Gandhi - de falar às mentes e aos corações.


José Arbex Jr.
- Mas a bancada do PT está tomando o caminho inverso, porque, nessa lei que dá foro privilegiado a ex-funcionários do governo, o PT votou junto com o PSDB e com...

Pois é você me tirou as palavras da boca. O que está faltando é que o presidente da República, que tem autoridade moral para isso, faça - como disse o Luis Fernando Veríssimo em uma crônica maravilhosa - um gesto, nem que seja um gesto só, para que o povo entenda que ele está do seu lado, não do lado dos banqueiros. E o Veríssimo, nessa crônica maravilhosa, lembrou o famoso ato político de Gandhi que deu início ao processo de independência da Índia. O governo britânico tinha o monopólio do sal, só se podia comprar sal do governo, e embutido no preço havia uma espécie de tributo. Isso afetava sobretudo as classes pobres, a imensa maioria da população indiana. Em 1930, quando todos pressionavam Gandhi para iniciar o processo de revolta contra o governo britânico e ele hesitava porque sabia que os indianos iriam iniciar um processo de revolução armada, violenta, ele passou um mês meditando e dizia aos amigos: “Ainda não encontrei a verdadeira solução”. No fim de um mês, ele chamou vinte jovens - estavam a mais de 3.500 quilômetros do litoral - e disse: “Vamos iniciar uma caminhada muito simples para mim”, dizia ele, já velho, “é tão fácil, vamos andar 18 quilômetros por dia”. Brincadeira de criança, mas havia por trás disso um enorme projeto político. Ele atravessou centenas de aldeias. Em cada aldeia era recebido com flores, à maneira indiana, e dizia: “A Índia precisa se libertar do jugo britânico, precisa se tornar independente, mas no respeito integral às pessoas, aos ingleses” etc. Em cada vilarejo ele dizia isso. Quando chegou depois de mais de um mês à beira-mar, havia centenas de fotógrafos e jornalistas ali esperando um gesto dele. Ele se abaixou e recolheu um pouco de sal, era uma zona salina, e disse (infelizmente, naquela época não existia televisão): “Peço a todos os indianos que doravante não respeitem mais o monopólio do sal”. A Índia pegou fogo. É um gesto de genialidade política! Eu acho que Lula tem capacidade para gestos desse tipo. É a minha esperança e acho que ela não vai morrer.


João de Barros - O senhor teme que ele possa ser enredado também pela situação, quer dizer, o povo ganhou na urna mas perdeu no tapetão?

É esse o perigo. Não por malícia do governo. Acho, por exemplo, que o Palocci é um homem de boa-fé. Ele acredita em uma política que, a meu ver, vai tornar cada vez mais difícil a solução do nosso problema. Mas eles vão ficar enredados por essa maldição do poder. Porque estão cercados de pessoas que a todo momento dizem: “Olha, cuidado, isso vai acabar mal...” “Todos os governos de esquerda foram para o brejo!” “Cuidado com a inflação”. O que é de uma desonestidade intelectual formidável da parte desses teóricos do capitalismo. Ainda o Luiz Gonzaga Belluzzo lembrava, em um artigo que escreveu na Carta Capital: “Um dos grandes fatores de recrudescimento da inflação, nos últimos anos, foi justamente a privatização”. Porque o Estado controlava os preços das empresas estatais. E em setores de infra-estrutura, telecomunicações, transportes, energia. A partir do momento em que isso passou para a empresa privada, a empresa privada disse: “Olha, não sou instituição de benemerência. Não sou mais órgão público. Eu quero é ganhar dinheiro”. Então, esse problema de inflação é apenas um biombo para esconder o verdadeiro interesse, que é a manutenção dessa hegemonia do setor financeiro sobre a economia. Se eles não afundarem, eles vão afundar o país. Mas no mundo todo a perspectiva é sombria, o capitalismo financeiro está caminhando para a sua própria destruição.

José Arbex Jr.
- Do ponto de vista da relação do capitalismo financeiro no resto do planeta, estamos assistindo à exacerbação absurda do poder das corporações, parte também das corporações financeiras e a arrogância do governo Bush, que outro dia disse que a Alemanha faz parte do mesmo time que o Irã, Coréia do Norte e todos os países que não querem punir o Iraque. Quer dizer, está comprando pau até mesmo com as potências européias do G-7. a partir daí é fácil avaliar a brutalidade cada vez maior com que vai tratar o Brasil, para eles o quintal do mundo. Podemos esperar uma ofensiva imperialista maior do que já houve até hoje. O atual governo estaria preparado para enfrentar essa pressão?

Eu não formulei a pergunta dessa maneira ao Lula logo depois da eleição, mas assinalei a ele esse problema, que é um dos mais sérios que o Brasil vai enfrentar. Curiosamente, o Lula não achou que fosse de grande seriedade. E eu retrospectivamente interpreto isso dando a essa reação do Lula a mesma explicação que dei há pouco. Ele está sinceramente convencido de que, negociando honestamente, abertamente com o governo americano, ele acaba encontrando uma solução. Felizmente, o Ministério das Relações Exteriores está sendo dirigido por diplomata de altíssima competência, e o Lula é assessorado por outra pessoa de grande competência e grande valor moral, o Marco Aurélio Garcia. O desempenho do Ministério das Relações Exteriores é excelente nesse início de governo. O que quero assinalar é o fato de que esse conflito com os norte-americanos não se resolve mediante negociação; como o conflito com o setor financeiro não vai se resolver mediante negociação. Acontece que é mais fácil resolver o problema com o setor financeiro dentro do Brasil. Porque o governo manda, e não pode deixar de mandar. No plano internacional é muito mais difícil porque não temos como nos opor aos Estados Unidos, mas temos como criar obstáculos para atrasar cada vez mais a implantação do projeto norte-americano de dominação da América Latina. Por exemplo, no caso da ALCA, é mais do que evidente que o governo norte-americano não vai poder impedir que o governo brasileiro submeta a referendo um futuro acordo. Ele não precisa dizer que não aceita o acordo. Ele pode dizer: “Olha, o povo votou, e votou contra”. O referendo está previsto na Constituição. Não há nenhuma proibição de que isso se estenda também a acordos internacionais. Mas, sobretudo, tenho muita esperança de que essa diplomacia brasileira vai tecer vínculos com outros países, chamados países-baleias, que poderão formar com o Brasil um bloco de oposição a essa prepotência dos Estados Unidos, e da União Européia também, no foro internacional, por exemplo, na OMC. Já tivemos o apoio da Índia no caso da quebra de patentes de medicamentos na OMC. É preciso costurar isso. A China ficará certamente ao lado do Brasil em alguns campos. Isso é o que se espera.


Natalia Viana
- O senhor acha que essa resistência à política dos EUA vem dos movimentos sociais, da população?

Infelizmente, o povo ainda não foi, sobretudo no Brasil, suficientemente instruído sobre esses perigos. No caso da guerra ao Iraque, consideramos isso muito distante e durante muito tempo - e aí volta a criticar os meios de comunicação de massa - eles não alertaram o público leitor e os espectadores de televisão para o fato de uma guerra no Iraque trazer conseqüências imediatas no plano econômico para o Brasil. A mesma coisa com a guerra do Afeganistão. Quero salientar que um jornalista da Globo escreveu um livro muito interessante sobre o Afeganistão mostrando a cumplicidade vergonhosa dos grandes órgãos de comunicação de massa, na apenas nos Estados Unidos, mas também no Brasil.

José Arbex Jr. - “Deus é inocente, a imprensa não”.

É, Carlos Dornelles. É por isso que, por exemplo, nessas manifestações de rua contra a guerra do Iraque, o Brasil não brilhou muito, tivemos poucas manifestações.


Nicodemus Pessoa - Professor, queria incluir um pouco da memória da sua atuação política nos anos da ditadura. Poderia falar disso?

Olha, eu fiz muito pouco, e me reprovo muito por essa omissão. A única coisa que fiz, que tem um certo valor, foi ter atuado na Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo, sob a orientação do dom Paulo Evaristo Arns. Na época éramos um dos poucos elos de comunicação com o governo, por intermédio de dom Paulo, e tínhamos contado direto com toda aquela tragédia. As pessoas vinham à Comissão Justiça e Paz contar não só aquilo que tinha acontecido a seus familiares e amigos, mas aquilo que eles pessoalmente tinham sofrido. E procurávamos divulgar essas informações, procurei divulgar essas informações na Europa, porque nenhum governo, mesmo o mais ditatorial, pode permanecer, pode funcionar apenas com base na força. Ele precisa sempre de uma base de legitimação moral. É essa a homenagem que o vício presta à virtude. Acho que dei uma pequena contribuição aí, mas não foi relevante. Quero aproveitar para manifestar minha admiração por todos aqueles que sofreram nas mãos dos verdugos do regime militar, e foram jovens, moços e moças como eu, e que tiveram a coragem que não tive de me levantar contra o regime. Mas, como eu estava dizendo, já falei muito e queria terminar lembrando o ministro Evandro Lins e Silva, que foi uma figura notável porque defendeu perante o Tribunal de Segurança Nacional, sem receber um centavo de honorários, mais de um milhar de presos de todo o espectro político, da extrema esquerda à extrema direita, e ao terminar seu livro de memórias, que é de grande relevância e interesse - O Salão dos Passos Perdidos - , ele lembrou aquele episódio que ocorreu no Nordeste, sua pátria. Havia lá um certo costume, quando o filho do coronel se formava, e geralmente se formava em direito, o coronel convidava todos os amigos e parentes para uma sessão solene no teatro da cidade onde o jovem diplomado ia fazer um discurso. Então, em uma dessas ocasiões, o coronel foi e estava com seu dileto amigo ao lado e muito emocionado, que ouviu o filho falar, e quando terminou o coronel se virou para o amigo e perguntou: “Que tal? Como foi meu menino?” E o amigo: “Muito bem, ele fala muito bem. O problema é que o assunto terminou e ele continua a falar”.


Ricardo Vespucci - Eu queria ouvi-lo sobre a sua relação com os alunos. Considero uma parte fundamental.

Mas isso quem pode me dizer é você, que foi meu aluno! O que você vai me dizer é o que vai me envergonhar! Durante muitos anos fui tido como um professor cruel. Um professor que não admitia a menor falta. Mas foi pecado de juventude. Quando meus filhos cresceram e felizmente tiveram uma relação muito franca comigo, o que é muito bom para os pais, porque a gente aprende a se enxergar, passei a ver em todos aqueles moços e moças na minha frente outros tantos filhos e filhas, e fiquei muito mais descontraído. Hoje, o grande prazer meu é lecionar. Por isso eu dizia que não quero assumir nenhum caro público, não só sem falsa modéstia, porque acho que não sou competente e porque tenho certos vícios de temperamento, sou siciliano, tenho estopim curto e certamente vou brigar no dia seguinte, mas também porque isso vai me afastar dos meus alunos.

Ricardo Vespucci - Quantos filhos o senhor tem?

Tenho três, mas tenho sobretudo uma neta. E essa neta é a doçura do meu crepúsculo.


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